terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Confronto na China mata ao menos 16: Embate entre policiais e grupo suspeito ocorreu em Xinjiang, província com forte presença da minoria étnica uigur

Uigures, que são 45% da população local, acusam o governo chinês de repressão e de privilegiar a etnia han
MARCELO NINIODE PEQUIM
Um novo confronto na instável província de Xinjiang, noroeste da China, fez 16 mortos, incluindo dois policiais.
É mais um na série de episódios violentos dos últimos meses sob o pano de fundo da tensão étnica que paira entre a minoria muçulmana uigur e as autoridades.
O incidente ocorreu no domingo à noite perto da cidade de Kashgar, uma área de forte predominância uigur.
Policiais que perseguiam suspeitos foram atacados por um grupo com facões e explosivos, afirmou o portal Tianshannet, mantido pela Região Autônoma de Xinjiang.
Foi o segundo incidente na região em um mês, após um ataque à polícia que deixou 11 mortos.
O governo costuma culpar "extremistas" islâmicos pela violência na província, uma das maiores da China e importante pelos recursos minerais e por ser a porta de entrada para a Ásia Central.
Há dificuldade em confirmar as informações sobre o que ocorre em Xinjiang, devido às restrições impostas pelo governo. Jornalistas estrangeiros são frequentemente barrados.
Em outubro, quando um carro invadiu a praça Tiananmen, em Pequim, autoridades chinesas afirmaram que terroristas uigures estavam por trás do atentado, que deixou cinco mortos.
Uigures acusam o governo central de reprimir sua cultura e dar privilégios à etnia han (90% da população chinesa).
Resultado de uma política de forte incentivo à migração, a população han em Xinjiang cresceu de 220 mil em 1949, quando foi fundada a República Popular da China, para 8 milhões atualmente.
Entre os uigures (45% da população da província), há alta taxa de desemprego e crescente ressentimento contra o que julgam ser uma política de discriminação.
A agência oficial de notícias Xinhua atribuiu o ataque a "terroristas".
A porta-voz do ministério de Relações Exteriores, Hua Chunying, seguiu a mesma linha, sem mencionar extremistas islâmicos.
"Essa conspiração não tem apoio popular e está fadada ao fracasso", disse ela.
Fonte: Folha, 17.12.13.
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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Membro da cúpula do PC chinês é preso sob suspeita de corrupção: Zhou Yongkang é o mais alto dirigente a ser investigado por fraude no país desde 1949

MARCELO NINIO, DE PEQUIM
Um dos políticos chineses mais poderosos da última década foi colocado em regime de prisão domiciliar enquanto é investigado por suspeita de corrupção.
Até se aposentar, em 2012, Zhou Yongkang chefiava os serviços de segurança e era um dos homens do Comitê Permanente do Partido Comunista, órgão político máximo da China.
Ele não é só mais uma autoridade a cair na cruzada anticorrupção deflagrada pelo presidente Xi Jinping --é o mais graduado dirigente chinês investigado por corrupção desde a chegada dos comunistas ao poder, em 1949.
A sorte de Zhou, 71, começou a mudar no fim do ano passado, quando Xi Jinping assumiu a liderança do partido e nomeou uma comissão para investigar as denúncias de corrupção contra ele.
A ordem rompeu um tradicional acordo tácito de que membros aposentados do Comitê Permanente do PC não são investigados.
Nos últimos meses, vários aliados e protegidos políticos de Zhou começaram a ser investigados por corrupção. Sinal de que o cerco ao ex-czar da segurança estava se fechando.
O caso mais ruidoso foi o de Jiang Jiemin, que chefiou a agência reguladora das empresas estatais por apenas cinco meses até cair, em setembro. Ele é investigado por "violações disciplinares graves" --jargão geralmente usado para corrupção.
Antes, Jiang havia sido presidente de uma das gigantes do petróleo no país, a estatal China National Petroleum Corp (CNPC), que durante anos foi o bastião do poder de Zhou Yongkang.
Nos anos 90, Zhou também dirigiu a CNPC, que hoje sofre uma ampla investigação por corrupção. A empresa é uma das duas estatais chinesas no consórcio liderado pela Petrobras, que venceu o recente leilão para exploração do campo de Libra.
A indústria do petróleo é a mais monopolizada e lucrativa da China, e alguns analistas afirmam que a campanha anticorrupção é parte do esforço do governo para modernizar as estatais.
Mas também pode haver um outro motivo para Xi Jinping ter rompido a regra não escrita de poupar ex-membros do Comitê Permanente.
Segundo veículos de imprensa de Hong Kong e Taiwan, há suspeita de que Zhou teria mandado matar a ex-mulher e também planejado assassinar o próprio Xi.
Fonte: Folha, 12.12.13.
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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Sangue de tartaruga e pseudociência

Durante uma visita a Pequim, há alguns anos, o professor de filosofia e autor americano Stephen P. Asma teve uma gripe. Com sua mulher, que é chinesa, ele foi a um restaurante em busca de um remédio. Dois garçons cortaram o pescoço de uma tartaruga viva, despejaram seu sangue em um copo com uma dose de álcool de cereais e mandaram Asma beber. Ele bebeu.
Naquela noite, ele se sentiu melhor. Seria efeito da poção, um remédio popular chinês? Ele não tinha certeza. Mas Asma, treinado nos princípios da prova e da lógica, se dispôs a explorar a fronteira das ciências médicas oriental e ocidental.
"Muitos ocidentais zombam da própria ideia de que o sangue de tartaruga possa ter efeitos medicinais", escreveu no "NYT". "Mas essas mesmas pessoas podem beber uma tintura de casca de árvore ou colocar uma compressa de berinjela recomendada pelo doutor Oz para tratar câncer de pele. Estamos vivendo na vasta área cinzenta entre as sangrias e os antibióticos."
Mais ocidentais estão recorrendo à medicina chinesa tradicional e a outras práticas de saúde alternativas. Os americanos gastam cerca de US$ 5 bilhões por ano em suplementos fitoterápicos, muitas vezes consumidos sem aconselhamento médico. Mas, escreve Asma, "buscamos alguma validação científica para essas práticas antigas". Distinguir entre ciência e "pseudociência" é o que os filósofos chamam de "problema de demarcação".
Enquanto muitas pessoas confirmam a eficácia das terapias alternativas, evidências reais de que elas funcionam são raras.
Então que mal há em acreditar em remédios não testados, se eles parecem ajudar?
"Ceder um pouco à pseudociência em alguns casos pode ser relativamente inócuo, mas o problema é que fazer isso diminui suas defesas contra ilusões mais perigosas que se baseiam em confusões e falácias semelhantes", segundo Massimo Pigliucci, professor de filosofia na City University de Nova York, e Maarten Boudry, bolsista de pós-doutorado. "Você pode se expor e expor outras pessoas porque suas inclinações pseudocientíficas o levam a aceitar ideias que foram cientificamente reprovadas, como a ideia popular (e preocupante) de que as vacinas causam autismo."
Então em quem podemos confiar? Os que acreditam nos rigores da medicina e pesquisa ocidentais foram recentemente lembrados de que nenhuma ciência é perfeita. Um grande estudo que durou cinco anos revisou radicalmente as diretrizes para se tomar estatinas, classe popular de remédios para reduzir o colesterol. Ele foi recebido com grande interesse. As estatinas, concluíram os pesquisadores, beneficiariam um grupo muito maior de pessoas do que se pensava antes, revelação que certamente impulsionou milhões de prescrições das drogas. Apenas alguns dias depois, essas conclusões foram contestadas e a credibilidade das diretrizes ficou arruinada.
"Foi uma incompreensão catastrófica de como enfrentar esse tipo de mudança na política pública", disse ao "NYT" o doutor Steven Nissen, cardiologista da Cleveland Clinic. "Haverá uma grande reação."
Sobre sua própria saúde, Asma diz que é um "devoto da verdade pragmática falível".
"Apostamos em tratamentos de saúde", escreveu.
"Apostamos no maior número possível de opções; um pouco de acupuntura, um pouco de ibuprofeno, um pouco de sangue de tartaruga. Jogue cartas (ou remédios) suficientes e um dia a sorte cruzará o seu caminho."

Sexo impulsiona mercado na China

Por DAN LEVIN
CANTÃO, China - Boquiaberto e transpirando, Chen Weizhou olhava bonecas de silicone em tamanho natural com lingeries. Acima delas, um tutorial em vídeo mostrava como as bonecas, uma vez despidas, eram realistas ao tato.
Chen, 46, motorista de ônibus, é casado e havia ido ao Festival Nacional da Cultura Sexual, em Cantão, atrás "de diversão". "Quando você é jovem, o sexo é misterioso, mas, quando você se casa, ele fica insípido", disse.
Com o tema "sexo saudável, famílias felizes", a 11a edição da feira anual, de 8 a 11 de novembro, buscou remediar o drama de homens chineses como Chen -e das suas mulheres. A esmagadora presença de homens na feira reflete um desequilíbrio demográfico na China, onde décadas da política do filho único e uma preferência cultural por filhos homens se combinaram com os abortos seletivos de meninas, prática ilegal, gerando uma distorção de gênero nos nascimentos, com 118 bebês meninos para cada 100 meninas em 2012.
Na província de Guangdong, onde há cerca de 30 milhões de trabalhadores migrantes, a escassez de mulheres limita as opções dos solteiros.
Na capital de Guangdong, no sul da China, milhares de visitantes, quase todos homens de meia-idade portando câmeras, percorriam os corredores do centro de exposições em busca de qualquer pedaço de carne visível.
"Os caras passam o dia tirando fotos minhas", disse a modelo Liang Lin, 23, que vestia só um biquíni e abraçava defensivamente a barriga descoberta, enquanto uma multidão masculina se acotovelava em busca do melhor ângulo.
Três décadas depois de a China começar a se desfazer dos pudicos costumes da era maoista, o sexo virou um grande negócio. Em todo o país, "salões de cabeleireiro" com iluminação rósea e atendentes femininas em trajes provocativos competem com as clínicas de massagens e as acompanhantes pagas que enfiam seus cartões de visita sob portas de quartos de hotel. Quem quer apimentar seus encontros pode fazer compras em lojas de "produtos para saúde adulta" ou pela internet.
Segundo a imprensa estatal, mais de mil empresas chinesas produzem cerca de 70% dos brinquedos sexuais do mundo, faturando US$ 2 bilhões por ano, conforme dados de 2010.
O Partido Comunista proíbe a pornografia e pune os culpados por "licenciosidade grupal", em nome da proteção de valores chineses tradicionais, mas a autoridade moral do partido vem sendo abalada por causa da revelação de peripécias sexuais de alguns dirigentes. Em junho, um funcionário do governo foi sentenciado por corrupção depois da divulgação de um vídeo em que ele aparecia na cama com uma moça de 18 anos.
Em um esforço para conferir um verniz de respeitabilidade à feira, organizações médicas governamentais mantiveram alguns estandes, que ficaram às moscas. O apelo principal era a luxúria.
Esses desejos insaciados contribuem para a explosão do mercado doméstico dos brinquedos sexuais. A rede chinesa Buccone vende acompanhantes inanimadas de luxo. Essas bonecas de borracha, que custam US$ 6.400, se aquecem "como uma pessoal real", disse o funcionário Nie Tai, 23, e podem ser customizadas.
Li Jianglin, 42, gerente de uma fábrica de calçados, venceu um concurso em que os participantes inflavam um preservativo, tentando estourá-lo antes dos concorrentes. Ele ganhou um prêmio em dinheiro equivalente a US$ 0,16, camisinhas com aroma de morango e um aparelho a pilha, rosa, com os dizeres "domine pelo gozo" na caixa. Ele examinou a geringonça.
"Essas camisinhas são úteis, mas não sei o que é esse troço."
Uma corretora imobiliária aposentada, de 66 anos, acariciava um aparelho de formato anatômico, que seu marido comprou por US$ 8. A mulher, que se identificou apenas como sra. Huang, comentava com deslumbramento como tudo mudou desde seu casamento, em 1975. "Na época, sob o Mao, a gente nem podia falar de sexo", disse. E como então o casal aprendeu? Ela sorriu. "Instinto."

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Governo chinês força urbanização: Cidades na China expõem disfunção social

Por IAN JOHNSON
HUAMING, China - Três anos atrás, a Exposição Mundial de Xangai apresentou esta cidade, recém-construída, como o exemplo de que a China deixaria de ser uma terra de fazendas para ser uma terra de cidades. Hoje Huaming pode ser um modelo de outra transformação: a guetização das novas cidades chinesas.
Os sinais de disfunção social são muitos. Os jovens, que passam os dias em cibercafés ou salões de bilhar, dizem que poucos têm empregos. Os idosos são obrigados a fazer bicos para pagar as contas no fim do mês. As estruturas familiares e de vizinhança foram abaladas. Além disso, aumentaram os suicídios.
Enquanto a China leva adiante a urbanização promovida pelo governo, muitos temem que as dezenas de novos conjuntos habitacionais possam ter o mesmo destino que os projetos do pós-guerra nos países ocidentais. Destinados a solucionar um problema, eles talvez estejam criando outros que poderão empestar as cidades chinesas durante gerações.
"Tenho crises de ansiedade porque não temos renda nem emprego", disse Feng Aiju, 40, ex-agricultora que se mudou para Huaming em 2008 contra sua vontade. Ela disse que gastou uma pequena fortuna pelos padrões locais, US$ 1.500, com antidepressivos. "Nunca tivemos a oportunidade de falar, nunca nos perguntaram nada. Eu quero ir para casa."
Huaming está longe de ser uma favela perigosa. Não tem gangues, uso de drogas ou violência de rua. Quase metade da cidade é dedicada a áreas verdes. Árvores bordam as ruas que levam às escolas.
Mas as novas casas têm paredes rachadas, janelas que vazam e elevadores com piso enferrujado. Para os agricultores, que foram intimados a entregar suas terras ancestrais, a deterioração aumenta a sensação de que foram enganados.
"Aquela terra era deles", diz Wei Ying, mulher de 35 anos desempregada, cujos pais vivem em uma unidade mal construída. "Você precisa compreender como eles se sentem no íntimo." A sensação de desespero e alienação vem à superfície nos suicídios -o salto de uma sacada tarde da noite, a ingestão de pesticida ou o deitar-se nos trilhos do trem.
"Estamos falando de centenas de milhões de pessoas que estão se mudando para esses lugares, mas o padrão de vida para esses realojados na verdade caiu", disse Lynette Ong, cientista política da Universidade de Toronto que estudou áreas de reassentamento. "Além disso, há a qualidade dos edifícios -houve muita corrupção e eles roubaram os materiais."
Essas novas cidades contrastam com a habitação improvisada onde vivem outros migrantes. Muitas delas são criadas por agricultores que decidiram deixar sua terra. Embora amontoados, esses locais são cheios de vitalidade e mobilidade ascendente, disse Biao Xiang, da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
"Esses bairros de migrantes nas grandes cidades são muitas vezes chamados de favelas, mas são as novas comunidades de reassentamento que serão mais difíceis de reviver, em parte porque não estão relacionadas a qualquer atividade econômica produtiva", disse o professor Xiang.
A ideia por trás de Huaming foi radicalmente diferente. Em 2005, o distrito de Huaming foi escolhido para ser uma demonstração de urbanismo planejado e bem-sucedido. Um distrito é uma unidade administrativa maior que uma aldeia e menor que um condado, e Huaming tinha 41 mil pessoas vivendo em 12 pequenas aldeias espalhadas por 155 quilômetros quadrados, na maioria terras agrícolas.
Para o norte da China, o local era incomumente fértil, porque tinha água em abundância. Nos arredores de uma das maiores cidades da China, o porto de Tianjin, Huaming era conhecida por seu artesanato e especialmente por seus legumes.
Os urbanistas, porém, a consideraram um grande problema. "As aldeias formadas naturalmente tinham sofrido desenvolvimentos desordenados que resultaram em baixa densidade das construções, em espaço industrial desorganizado e má distribuição", segundo uma publicação que explicou a necessidade de mudança. (As autoridades recusaram pedidos de entrevista.) As aldeias não tinham tratamento de esgoto e eram "sujas, desordenadas e abaixo do padrão".
A ideia foi consolidá-las em uma nova cidade chamada Huaming, que ocuparia menos de 2,5 quilômetros quadrados, em vez dos 8 que as 12 aldeias tinham ocupado.
Uma parte dos 152 quilômetros quadrados restantes poderia ser vendida para incorporadores para pagar pela construção, o que significava que os novos edifícios não custariam nada para os agricultores ou para o governo.
O resto da terra continuaria sendo utilizado para fins agrícolas, mas seria cultivado por alguns agricultores restantes usando métodos modernos.
Isto alcançaria outro objetivo: não reduzir a quantidade de terra arável.
A construção começou em março de 2006 e foi concluída apenas 16 meses depois. A cidade é formada por prédios de seis a nove andares, divididos em condomínios fechados de cerca de uma dúzia de edifícios. O espaço comercial se limita oficialmente a duas ruas, tornando o resto da cidade uma área residencial tranquila, centrada nas novas escolas. Um parque atraente com um lago fica aberto à noite para encontros sociais.
O maior ponto de venda na literatura oficial é como o espaço seria distribuído. Os agricultores poderiam trocar o espaço útil em sua casa na fazenda por um apartamento do mesmo tamanho na nova cidade.
Até o pátio em torno da casa rural entrava na equação.
O que aconteceu foi mais complexo. A maioria acabou tendo menos espaço para viver do que tinha na fazenda. E muitos não queriam deixar sua terra. Em 2008, a oferta do governo tinha alcançado um sucesso limitado, e apenas a metade da população decidiu se mudar. Mas a propaganda do governo já saudava Huaming como um sucesso e as autoridades planejavam apresentá-la na feira mundial dali a dois anos. "Eles disseram que se não nos mudássemos isso afetaria a exposição mundial", disse Jia Qiufu, 69, ex-morador da aldeia de Guanzhuang.
O governo local fez intensa pressão para forçar os agricultores a deixarem suas aldeias. Destruiu as estradas e cortou a eletricidade e a água. Mesmo assim, milhares de pessoas ficaram. Como última medida, as escolas foram demolidas.
Além da insatisfação sobre a quantidade de espaço que receberiam, os agricultores estavam preocupados com os empregos, temor comum em outros projetos de reassentamento. Comparado com projetos de relocação em áreas remotas, Huaming é quase um grande corredor de transporte, a Via Expressa Pequim-Tianjin. Também é vizinha do enorme centro de logística do aeroporto de Tianjin, que oferece milhares de empregos. Muitos agricultores disseram, porém, que não se qualificaram para esses cargos.
Segundo os moradores de Huaming, os únicos empregos disponíveis para eles são trabalhos sem perspectivas, que pagam o equivalente a US$ 150 por mês. Mesmo assim, a concorrência por eles é ferrenha. Migrantes pobres de outras partes da China estão dispostos a trabalhar por ainda menos. Quase toda a jardinagem nos espaços públicos de Huaming, por exemplo, é feita por trabalhadores da província interior de Henan, que vêm por um curto período e vão embora. "Comparado com Henan, é bom trabalho", afirmou Zhuang Wei, 58, que disse morar em um quarto com outros cinco homens.
Mesmo quando conseguem trabalhos que pagam bem, os moradores dizem que quase não podem pagar as contas. Uma creche custa US$ 100 por mês por criança.Outros custos também são altos. A inflação quase duplicou o preço do arroz. No passado, eles mesmos o plantavam.
Muitos parecem ter desistido de encontrar trabalho. Os cibercafés ficam lotados de jovens. Em um deles, Zhang Wei, 28, disse que tinha investido US$ 4.300 para reformar o apartamento e instalar computadores. A antiga sala da unidade estava cheia de jovens debruçados sobre telas. "São todos moradores desempregados, mas sem qualificações o que podem fazer?", indagou Zhang.
Mais comuns são as histórias de idosos que rapidamente morrem de doenças. "Estou cansada, muito cansada", disse uma mulher idosa que só deu seu sobrenome, Wei. "Veja os campos vazios", disse Wei Naiju, que veio da aldeia de Guanzhuang. "Você realmente poderia plantar alguma coisa lá."
Percorrer as aldeias demolidas com ex-moradores é especialmente triste. É uma paisagem bombardeada, com alicerces cobertos por detritos.
De volta à cidade, a vida de quem se mudou para o distrito foi memorializada em um museu. Cheio de vitrines em tamanho real com casas de aldeia e figuras humanas, é uma recriação da antiga vida na aldeia. Uma placa introdutória explica: "O tempo passa e as coisas mudam".

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Reforma na China derruba valor do dólar

Moeda tem a maior queda desde agosto com investidores otimistas com perspectiva de maior abertura chinesa
Dólar fecha em baixa de 2,2% em relação ao real; bom humor é global, e Bolsas sobem no Brasil e no exterior
DANIELLE BRANTDE SÃO PAULO
O otimismo de investidores com as reformas anunciadas pela China na última sexta derrubou o dólar e deu impulso às Bolsas no Brasil e no mundo. A aposta de analistas é que a maior abertura da economia chinesa beneficie fornecedores de matérias primas, como é o caso do Brasil e de outros emergentes.
Nesse cenário, o dólar à vista, referência no mercado financeiro, fechou em queda de 2,20%, a maior desde 28 de agosto, cotado a R$ 2,267. E o dólar comercial, usado no comércio exterior, teve baixa de 2,32%, a maior desde 18 de setembro, para R$ 2,268.
Segundo o economista-chefe da Gradual Investimentos, André Perfeito, a permissão para que a iniciativa privada ocupe um espaço maior na economia chinesa atrai investimentos mais pesados ao país e anima sobretudo os emergentes, grandes fornecedores de matérias-primas.
"Isso fortalece as moedas locais em relação ao dólar", acrescenta. "Mas é difícil saber até que ponto as reformas vão se concretizar."
O governo chinês não deu prazo para a implementação das mudanças nem detalhou como vai executá-las.
Das 24 moedas emergentes mais negociadas, 18 subiram ontem em relação ao dólar. O real foi a que mais se valorizou, seguido pela rupia indonésia (alta de 1,98%) e pela rupia indiana (1,53%).
PATAMAR DO DOLAR
Para analistas, o dólar deve permanecer no patamar entre R$ 2,25 e R$ 2,30 até o fim do ano, podendo alcançar R$ 2,35 segundo algumas projeções.
Tudo vai depender, afirmam, da velocidade da redução dos estímulos econômicos nos EUA.
Desde 2012, o Fed (banco central americano) injeta mensalmente US$ 85 bilhões na economia por meio da recompra de títulos. Parte desse valor se reverte em investimentos em outros países.
Com a redução do incentivo, o volume de recursos disponíveis para essas aplicações diminui e, diante da perspectiva de menor entrada de dólares no Brasil, o preço da moeda americana tende a subir ante o real.
Na última quinta, Janet Yellen, indicada para assumir o Fed em 1º de fevereiro, deu a entender ao mercado financeiro que vai manter os estímulos até que a economia dos EUA esteja mais robusta.
INTERVENÇÕES
O BC brasileiro deu continuidade ontem ao seu programa de leilões de contratos de "swap" cambial, que equivalem à venda de dólares no mercado futuro e empurram as cotações para baixo.
O Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, subiu 1,60%, para 54.307 pontos, favorecido também pelos mercados americanos. Em Nova York, os índices Dow Jones e S&P 500 bateram recordes de pontos durante o dia.
As ações da Petrobras ajudaram a Bolsa local. Os papéis mais negociados subiram 4,84%, para R$ 21,44.


9 LONGOS PASSOS O QUE PODE MUDAR
1 Criação de tribunal especial para coibir pirataria
Violações de propriedade intelectual, marca do país, receberão atenção especial

2 Fim dos preços controlados pelo governo central
Flutuarão até tarifas de serviços estatais (água, telefonia, eletricidade, transporte etc.)

3 Fatia maior para o governo em lucro de estatais
Empresas que hoje remetem de 5% a 15% de seu lucro repassarão 30% até 2020

4 Haverá bancos privados; regulação aumentará
Investidores poderão ter bancos; sistema, em grande parte clandestino, será reformado

5 Redução gradual no controle de juros e câmbio
O teto de juros em bancos estatais deixará de existir; controle cambial será afinado'

6 Maior proteção para depósitos bancários
Serão criados um sistema de seguros e um mecanismo para recuperação judicial

7 Abertura maior para o investimento externo
Restrições a empresas serão afrouxadas; fusões e aquisições, permitidas sob limites

8 Investimento social passa a ser uma prioridade
Emprego e renda receberão atenção; serão criados sistemas de Previdência e saúde

9 Agricultor terá direito de posse de terra ampliado
Transferência será permitida


Burocracia será menor que a do Brasil, diz advogado
Foco no consumo interno abre oportunidades, avalia responsável por 1 dos 3 escritórios do Brasil com licença para operar na China
MARIANA BARBOSADE SÃO PAULO
As reformas econômicas da China poderão representar uma oportunidade para ampliar a pauta de exportações brasileiras, na opinião do advogado Rodrigo do Val Ferreira, 35, desde 2005 está à frente do escritório Felsberg e Associados em Xangai.
O escritório é um dos três brasileiros com licença para atuar na China e representa clientes como Banco do Brasil, BRF, Embraco, Gerdau, Queiroz Galvão e Renner.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Folha - Como as reformas poderão contribuir para melhorar o ambiente de negócios?
Rodrigo do Val Ferreira - No médio e longo prazo, deve-se esperar uma China bem menos burocrática, mais próxima do ambiente de negócios de Hong Kong do que do Brasil. A China ganhará ainda mais competitividade.
Isso é muito bom para as empresas brasileiras aqui, mas não muito bom para as que operam no Brasil, onde o ambiente de negócios é muito burocrático.
As reformas poderão facilitar o investimento de empresas brasileiras na China?
Sem dúvida. O grau de discricionariedade e o poder de decisão das autoridades na China é muito grande.
É necessário um sem-número de licenças para coisas que, em outros lugares, são simples.
O que a reforma busca é simplificar procedimentos, com mais transparência, objetividade e rapidez.
Como uma eventual redução da presença estatal na economia pode se refletir nos negócios de empresas brasileiras?
Com um ambiente de negócios mais transparente, diminui-se tanto a margem de incerteza sobre resultados, como também o tempo e o custo para se atender às exigências do governo.
Compare, por exemplo, o ambiente de negócios de Hong Kong com o da China: se determinado investidor quer sair de um negócio e vender sua participação em uma empresa na China, é necessário notificar as autoridades chinesas e que ela concorde com a substituição.
Em Hong Kong, basta arquivar a alteração social. Por isso, em muitos casos, investidores constituem uma controladora em Hong Kong para investimentos a serem feitos na China e, quando há o interesse em sair do negócio, vendem a controladora.
O foco no consumo interno abre oportunidades para empresas brasileiras?
Sem dúvida nenhuma. A entrada da China como um grande mercado de consumo, e não só de exportação, é extremamente vantajosa para o Brasil, que, apesar dos pesares, se mantém competitivo em diversos setores.
Isso coloca toda a responsabilidade de um eventual deficit na balança em nossas mãos. Somos nós que devemos fazer nosso dever de casa, tornar competitiva nossas exportações e investir, como as empresas de outros países, no marketing de nossos produtos, em vez de simplesmente vender commodities.
Leia a íntegra

Diretor escancara violência na China

Por EDWARD WONG
PEQUIM - Jia Zhangke, o mais destacado diretor de filmes de arte chinês, preparava-se para fazer seu primeiro filme de artes marciais com grande orçamento, ambientado na China dinástica, quando a realidade se intrometeu.
Jia descobriu o mundo dos microblogs no estilo Twitter, que muitos chineses têm lido nos últimos anos para receber notícias diárias sem manipulação e opiniões diferentes das encontradas na mídia estatal. Ele foi bombardeado por notícias de todo o país, na maior parte ligadas a crimes de autoridades ou empresários corruptos: estupros, invasão de terras e poluição industrial.
Em muitos desses casos, segundo Jia, chineses comuns frustrados tinham sido levados a cometer atos sangrentos.
"Lentamente, comecei a ver o problema da violência individual na sociedade", disse Jia, 43, em seu escritório em Pequim. "Falando com franqueza, sinto que a população chinesa não compreende realmente o problema da violência, porque nunca houve uma discussão ampla dessa questão."
Jia decidiu deixar de lado o épico e fazer um filme de ação, mais na linha de sua obra como um todo. Chamado "Um Toque de Pecado", o filme estreou no Festival de Cannes em maio, onde ganhou o prêmio de melhor roteiro, e foi exibido neste outono em festivais de cinema como o de Nova York, em outubro. Jia disse anteriormente que o filme poderia estrear na China neste mês, mas uma data ainda não foi definida.
Baseado em fatos do noticiário, o filme conta quatro histórias entrelaçadas de chineses comuns que, sob circunstâncias extremas, recorrem à violência. Um trabalhador de mina na província de Shanxi efetua um tiroteio contra o dono da mina e outros patrões locais. Um jovem operário de fábrica só encontra desespero em uma empresa que parece a Foxconn, empresa de Taiwan que fabrica os produtos Apple.
Embora pareça improvável, a forma do filme tradicional de artes marciais foi transportada da ideia original de Jia de um filme dinástico para o novo projeto.
Os protagonistas tentam de diversas maneiras sanguinolentas assumir o controle de seus destinos. Uma das imagens mais marcantes é a de uma funcionária de uma casa de massagens, interpretada por Zhao Tao, a mulher e antiga colaboradora de Jia, que caminha por um corredor com sua saia branca empapada de sangue, segurando uma faca. Antes, um cliente abusivo havia tentado estuprá-la, mas encontrou um duro final.
Este é o sexto longa-metragem narrativo de Jia. Seus primeiros três filmes foram passados em sua cidade natal, Fengyang. A partir de "O Mundo", de 2004, Jia começou a ambientar suas histórias em outras partes da China para mostrar a dissonância social que acompanha a transformação econômica. "Natureza Morta", por exemplo, passa em uma cidade que vai ser inundada por causa da construção da Barragem das Três Gargantas.
Em "Um Toque de Pecado", Jia ambientou cada história em uma parte diferente da China, para tentar capturar o movimento dos chineses que buscam suas fortunas e a intersecção de vidas contra esse pano de fundo. "O filme não trata apenas de emoções individuais, mas também de uma expressão do estado de todo o país", disse Jia.
O orçamento de US$ 4 milhões foi o maior dos filmes de Jia. Depois de apresentar uma cópia para o painel de censura do Estado, ele recebeu duas páginas com exigências de modificações e recomendações. Ele disse que os pedidos foram surpreendentemente leves. As mudanças obrigatórias se referiam a alguns diálogos que os censores consideraram muito grosseiros, disse Jia. Em uma lista de mudanças recomendadas, os censores disseram que o filme poderia ter menos violência.
No final, os censores recuaram. "Eu sinto que é um filme destinado a ser uma reflexão sobre a violência. Se não virmos a destruição da violência, não sei o que estou tentando dizer", disse Jia.
Ele suspeita que os censores se abrandaram porque as narrativas já tinham entrado na consciência do público graças à internet. "Essas histórias são uma espécie de registro que não pode ser removido", disse.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

China anuncia reformas e foca mercado: etalhes são vagos, mas incentivo a consumo, inserção da população rural e abertura econômica são pontos-chave

Meta é atingir objetivos de cúpula até 2020; interação entre papel do Estado e do setor privado será calibrada
RAUL JUSTE LORESDE WASHINGTON
A terceira plenária do 18º Congresso do Partido Comunista da China terminou ontem com o anúncio de reformas econômicas e sociais "aprofundadas" que darão papel "decisivo" à iniciativa privada e ao mercado, segundo a agência estatal Xinhua.
As decisões do Comitê Central do partido indicam vitória dos reformistas liberais. Mas são vagas, como de costume, sobre mudanças concretas a serem feitas pela gestão do presidente Xi Jinping.
Em comunicado intitulado "Temas de maior importância que sofrerão reformas profundas e abrangentes", a agência lista 15 prioridades.
Estão incluídos aí a transformação do papel do governo, um sistema de mercado moderno, a unificação do desenvolvimento rural e urbano, a abertura econômica, a criação de uma "cultura da inovação" e o "respeito à lei".
A data para atingir os objetivos das reformas é 2020.
O texto da agência fala que a reforma econômica definirá uma relação própria entre o papel do governo e o do mercado, e que "os camponeses devem ter participação igual no processo de modernização e dividir seus frutos". Espera-se que o PIB chinês cresça 7,6% em 2013.
Nas duas primeiras plenárias, que reúnem os 205 membros do Comitê Central do Partido, o presidente Xi e o premiê Li Keqiang citaram a necessidade de liberalizar o sistema financeiro e responder à desaceleração causada pela queda da demanda das economias maduras e pela excessiva dependência dos investimentos estatais.
Os quatro grandes bancos estatais do país têm que fazer empréstimos bilionários a governos locais que investem pesadamente em infraestrutura para garantir o crescimento exigido pelo partido.
Pequenos empresários, sem poder competir com os maiores credores, acabam se amparando em um sistema de bancos clandestinos e populares, conhecido como "shadow banking", sobretudo na costa leste e sul do país.
Com poucas opções de investimento, os chineses acabam direcionando suas economias ao mercado imobiliário, criando bolhas regionais.
Além disso, sem sistema universal de aposentadorias e com salários baixos, poupam muito e consomem menos do que poderiam, deixando 50% da economia do país depender dos investimentos públicos em infraestrutura.
Como parte da arrecadação de prefeituras vem da venda de terrenos, camponeses são despejados facilmente de subúrbios rurais das grandes cidades, nas quais o investimento pesado criou um padrão de vida muito distante daquele da população rural, que ainda perfaz 50% do país --ou 670 milhões de pessoas.
Com metáforas caras aos chineses, o comunicado diz que o povo deve avaliar o uso do poder pelo governo: "O poder precisa operar sob o sol e ficar dentro de uma gaiola".
Também foi anunciada ontem a criação de um Conselho de Segurança Nacional --no texto original, os caracteres do novo organismo são os mesmos que designam seu homônimo americano.
Fonte: Folha, 13.11.13

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Autores acatam censura para entrar no mercado chinês

PEQUIM - Os leitores chineses da biografia do líder reformista Deng Xiaoping escrita por Ezra Vogel podem ter sentido falta de alguns detalhes que constavam na edição inglesa original.
A versão chinesa não mencionava que os jornais chineses haviam recebido ordens de ignorar a implosão comunista em toda a Europa Oriental no final dos anos 1980. Nem que o secretário-geral Zhao Ziyang, expurgado durante a repressão na praça Tiananmen, chorou ao ser colocado sob prisão domiciliar.
Vogel, professor emérito da Universidade Harvard, disse que a decisão de permitir que censores chineses mexessem na sua obra representou uma barganha desagradável, mas necessária, pois graças a ela o livro pôde alcançar leitores com os quais muitos autores ocidentais só podem sonhar.
Seu livro, intitulado "Deng Xiaoping and the Transformation of China" [Deng Xiaoping e a transformação da China], vendeu 30 mil exemplares nos EUA e 650 mil na China. "Para mim a escolha foi fácil", disse ele. "Achei melhor ter 90% do livro disponível aqui do que ter zero."
Tais concessões estão se tornando comuns. Com uma população altamente alfabetizada e faminta por obras de escritores estrangeiros, a China é uma fonte crescente de faturamento para as editoras americanas. No ano passado, os lucros dos editores dos EUA com a venda de livros eletrônicos para a China cresceram 56%, segundo a Associação Americana de Editores. As editoras chinesas adquiriram mais de 16 mil títulos do exterior em 2012, frente a 1.664 em 1995.
Em outubro, editores e agentes literários chineses compareceram em peso à feira do livro de Frankfurt, dando lances para a aquisição de obras de escritores ocidentais e oferecendo polpudos adiantamentos. A China também pode ser uma mina de ouro para os direitos autorais. No ano passado, J.K. Rowling recebeu US$ 2,4 milhões daqui, e Walter Isaacson, autor da biografia "Steve Jobs", ganhou US$ 804 mil, segundo o "Diário Metropolitano Huaxi", de Chengdu.
Escritores ocidentais que concordam em submeter seus livros ao imprevisível regime chinês de censura dizem que a experiência pode ser irritante.
O romancista Qiu Xiaolong, que vive no Missouri e ambienta seus romances de mistério em Xangai, disse que os editores chineses que adquiriram os primeiros três volumes da sua série do inspetor Chen alteraram a identidade de personagens centrais e reescreveram trechos do enredo que eles consideraram desabonadores para o Partido Comunista.
De forma ainda mais rude, disse ele, os editores insistiram em eliminar quaisquer referências a Xangai, substituindo-as por alusões a uma metrópole chinesa imaginária chamada H, porque entenderam que a associação com crimes violentos, ainda que fictícia, poderia macular a imagem da cidade.
Qiu, que escreve em inglês, mas foi criado na China, disse ter aceitado relutantemente algumas das alterações, mas que outras foram incluídas depois de ele ter aprovado as traduções que julgava serem definitivas. "Algumas das mudanças são tão ridículas que tornaram o livro incoerente", afirmou. Ele disse que se recusou a permitir que seu quarto romance, "A Case of Two Cities" (Um caso de duas cidades), fosse lançado na China.
Outros autores também já resistiram. Em 2003, Hillary Clinton determinou que sua autobiografia, "Vivendo a História", fosse retirada das prateleiras da China depois de ela ter descoberto que longos trechos haviam sido eliminados da obra. James Kynge, autor de "A China Sacode o Mundo", cancelou um contrato no ano passado porque um editor havia exigido que um capítulo inteiro fosse cortado.
Mas posições como essa, ao que parece, estão se tornando cada vez mais raras. Muitos autores se dizem divididos entre o seu desejo de proteger sua obra e a necessidade de ganhar a vida numa era de adiantamentos cada vez menores. Para outros, trata-se simplesmente de cultivar um público no país mais populoso do mundo.
Michael Meyer, cujo livro "The Last Days of Old Beijing" (Os últimos dias da velha Pequim), de 2008, lamenta a destruição do tecido histórico da cidade, ficou surpreso ao ver que muitas passagens não foram censuradas. Os editores fizeram alguns cortes previsíveis -incluindo uma referência à repressão na praça Tiananmen-, além de uma alteração no título a fim de apresentar o livro como uma carta de amor nostálgica ("Até Mais Ver, Velha Pequim").
Para Meyer, as mudanças mais curiosas foram feitas em relação a duas mensagens de texto citadas no livro, que foram enviadas ao autor por um arquiteto de Nova York que participava de uma discussão municipal de planejamento em uma grande cidade litorânea. A primeira descrevia a presença de uma moça de braços dados com um homem de meia-idade. A segunda mensagem anunciava que o homem era o prefeito, e que a mulher era a sua amante.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A revolução das encalhadas: Jovens chinesas rejeitam obrigação social de casar antes dos 30 anos

RESUMO Beneficiada por 30 anos de abertura econômica, geração de chinesas nascidas na década de 1980 se depara com pressão social contrária à profissionalização e ao adiamento do casamento. Família, governo e mídia colam às solteiras o rótulo de "mulheres sobra", que voluntariamente parte delas começa a contrariar.
*
Desde que rompeu um namoro de cinco anos, há poucos meses, a designer gráfica Bai Yu pensa duas vezes antes de visitar os pais.
A distância é uma boa desculpa, já que ela vive em Pequim e a viagem à Mongólia Interior, sua província de origem, é longa e cansativa. Mas o principal motivo que a mantém longe de casa é a pressão familiar. Se não mudar logo de estado civil, alertam os pais, ela corre o risco de perder o "prazo de validade".
Solteira aos 31 anos, pelas normas sociais chinesas Bai já passou faz tempo da idade de casar. O maior pesadelo foi na última Festa da Primavera, como é conhecido o Ano Novo chinês, quando a família se reuniu para a data mais importante do calendário chinês.
"Tem sempre aquela tia perguntando por que ainda não casei e outra com uma lista de candidatos que quer me apresentar", diz Bai.
Mas, para ela, o pior é carregar a marca desonrosa da encalhada, um fardo pesado num país em que igualdade entre os gêneros não acompanhou a vertiginosa transformação dos últimos 30 anos de abertura econômica.
O peso começa na semântica. Em mandarim, a junção de dois caracteres condensa o insulto de que são alvo as solteiras chinesas a partir dos 27 anos: "sheng nu" ("mulheres sobra", numa tradução ao pé da letra).
"O estigma do 'sheng nu' é o retrato perfeito do confronto épico que está sendo travado na sociedade chinesa entre o velho e o novo", diz Joy Chen, autora do best-seller "Não Case Antes dos 30" --como indica o título, uma incitação à rebeldia contra a rotulação.
Por milênios, explica Chen, o único papel da mulher na China era ser mulher e mãe. "Essas jovens têm o peso de 5.000 anos sobre os ombros. Acontece que as chinesas são cada vez mais instruídas e bem informadas e estão rejeitando o papel tradicional".
É o caso de Bai Yu, uma típica filha dos anos 1980. Ela faz parte da primeira geração nascida na esteira da abertura promovida a partir de 1978, mas ainda com um pé nos anos de isolamento e radicalismo da era maoísta.
"Odeio o termo 'sheng nu' e não me vejo como uma encalhada", diz Bai, vestida num elegante conjunto de seda azul turquesa. "Os mais velhos não entendem isso, mas estar solteira também pode uma escolha."
Além do preconceito e da pressão imposta pelos pais, a rebeldia de jovens como Bai enfrenta inimigos poderosos no aparato da autocracia chinesa.
Há alguns anos, a Federação de Mulheres da China, órgão estatal, oficializou o estigma da encalhada em artigos publicados em sua página na internet.
Os títulos beiravam a demonização das solteiras: "Oito formas simples de escapar da armadilhas da solteirona" ou "As solteironas merecem nossa simpatia?" (a resposta era não).
Para escapar do rótulo de encalhada e evitar o risco de virar uma sobra na prateleira do mercado de relacionamentos, o site da federação estabeleceu o limite de 27 anos como a linha vermelha das solteiras. Como a idade legal mínima na China para o casamento de mulheres é de 20 anos, isso deixa uma janela estreita para as jovens chinesas.
FEMINISTAS
A fato de ser da competência de uma agência estatal representar os interesses da mulher é sintomático da ausência de movimentos femininos sérios no país. A opinião é de Wu Qing, 75, incansável ativista de direitos humanos e uma das pioneiras (e solitárias) feministas da China.
Professora aposentada de inglês, Wu foi deputada do Congresso do Povo pelo distrito de Haidian, em Pequim, por 27 anos -até ser proibida de se candidatar ao posto, em 2011. Ela não esconde sua irritação toda vez que ouve o termo "sheng nu".
"É uma enorme discriminação contra a mulher. Por que não usam o mesmo termo para os homens? As pessoas não são sobras. Cada um deveria decidir se e quando quer casar", opina Wu.
Uma das fundadoras, em 1987, do grupo de estudos femininos da Universidade de Estudos Internacionais de Pequim, onde lecionava, ela diz que não é possível separar os direitos das mulheres da restrições às liberdades políticas no país. "Nenhum direito é dado de bandeja. Se querem igualdade, as mulheres têm que lutar por ela", esbraveja a ativista.
As reformas econômicas deram novas chances de ascensão às mulheres chinesas. Segundo um ranking da revista "Hurun", especializada no mundo dos endinheirados, sete das dez empreendedoras mais ricas do mundo são chinesas.
Mas Wu afirma que essas histórias de sucesso se desenrolaram apesar do sistema vigente, e não graças a ele. Homens ganham mais do que mulheres com a mesma qualificação e têm mais chances de serem promovidos. Isso sem falar na hegemonia masculina que prevalece na política.
"Entre os sete membros do Comitê Permanente do Partido Comunista, não há nenhuma mulher. E entre os 25 do Comitê Central só há duas mulheres. Quem vai defender os interesses femininos?", indaga a ex-deputada Wu.
COCHICHO
A pressão social sofrida pelas mulheres solteiras na China vai muito além do discurso oficial e do cochicho dos vizinhos, tendo reflexos na cultura popular.
A televisão chinesa exibe 22 programas de namoro, que atraem enorme audiência e geram inflamados debates. Um dos mais populares deixa claro já no nome que não há tempo a perder: "Se você não é sério, não me amole".
"Esses programas alimentam o estigma da solteira como perdedora e a pressão para que a mulher considere o casamento a única coisa que importa", reclama a jornalista Yuan Yaowen, 30. "E as candidatas são geralmente meninas entre 22 e 25 anos, que nem deveriam estar pensando em casar."
O choque entre tradicional e moderno cria um código de conduta que confunde e incomoda as mulheres da geração 80.
"Por um lado, a sociedade é ultracompetitiva e nos incentiva a valorizar a formação profissional para conseguir um emprego", diz Yuan, que está há mais de dois anos sem namorado. "Por outro, espera-se que larguemos tudo no começo de nossas carreiras para sermos mulheres e mães."
Os números comprovam: a importância do casamento manteve-se imune ao ataque às instituições burguesas promovido pelos comunistas, desde que tomaram o poder em 1949, e à modernização das últimas três décadas.
Segundo o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, 77,4% das mulheres chinesas entre 25 e 29 anos já são casadas. Para efeito de comparação, no Brasil, o índice de casadas para o mesmo grupo é de 32,7%; na França é de 27,3% -ainda que haja casos mais extremos que o chinês: na Índia, só 5,9% das meninas dessa faixa etária são solteiras.
A ansiedade dos pais para que as filhas se casem antes dos 30 é explicada pela preocupação com a imagem mas também pela manifesta preferência dos homens chineses em mulheres na casa dos 20 para o matrimônio.
Para desencalhar as filhas, todo esforço é válido --inclusive a embaraçosa exposição pública. No parque de Zhongshan, bem ao lado da Cidade Proibida, marco histórico de Pequim, centenas de pais se reúnem todo domingo, num verdadeiro mercadão de solteiros.
Mais uma vez, o abismo geracional é gritante. Enquanto os jovens buscam novas amizades e ensaiam flertes em plataformas virtuais, como microblogs e o programa de mensagens por celular WeChat (uma febre na China), os pais preferem se jogar no corpo a corpo.
Os casais se posicionam ao longo de uma das alamedas arborizadas do parque. Com pequenos cartazes escritos à mão, promovem os atributos dos filhas e informam os requisitos que esperam encontrar no genro de seus sonhos.
Cada um faz o que pode. Algumas mães andam pelo parque com o cartaz em punho, lembrando os compradores de ouro do centro de São Paulo. Outras chegam a pendurar no pescoço uma foto da filha ou do filho --há raros casos de rapazes anunciados, mas os solteiros não são rotulados como "encalhados". A maioria está lá sem o conhecimento dos filhos.
"Tian Xiaogi, nascida em 1986. Pós-graduada em ciência da alimentação na Nova Zelândia, 1,69 m de altura. Procura: rapaz entre 27 e 35 anos, pelo menos 1,70 m de altura, emprego estável, apartamento próprio."
Diante do cartaz, um pai com ar tímido espera possíveis interessados. O casal se dividiu. Enquanto ele marcava o ponto, a mulher caminhava pela alameda de anúncios, analisando currículos e trocando fotos com outros pais.
"Minha filha queria ficar na Austrália para fazer um doutorado, mas nós dissemos que era hora de ela voltar", conta Tian Li. "Ela está com 27 anos, é uma idade crítica. Depois dos 30 é muito difícil achar um marido."
O fator econômico também pesa. Pelas convenções chinesas, um homem precisa ter um imóvel para casar --como bem destacava o cartaz dos Tian. Segundo uma pesquisa da consultoria chinesa Horizon, 3/4 das mulheres consideram a posse da casa própria uma prioridade no candidato a marido.
O foco na riqueza a qualquer custo é uma marca dos anos de modernização na China que revolta a feminista Wu Qing. "A mídia oficial não para de promover a riqueza e o poder como metas", critica Wu. O casamento, por extensão, acaba se tornando um meio para alcançá-las.
Sabendo disso, muitos homens começam a financiar o apartamento para sua vida de casado bem antes de encontrar a noiva. O fenômeno é tão comum que impactou o mercado imobiliário.
Segundo um estudo elaborado por três economistas, entre eles Yin Liu, da conceituada universidade Tsinghua, em Pequim, a competição por noivas ajuda a explicar a disparada dos preços no mercado imobiliário chinês.
O resultado é que os preços dos imóveis são mais altos nas cidades onde a população masculina supera em muito a porção feminina. A corrida é tão acirrada que gerou um termo depreciativo para a oferta de homens que não podem começar a vida conjugal com a casa própria: "casamentos nus".
DEMOGRAFIA
A julgar pelos números da demografia chinesa, não deveria ser problema para as mulheres achar um noivo. Na faixa entre 20 e 30 anos, há 20 milhões de homens a mais que mulheres, resultado da prática de abortos seletivos condicionada pela preferência de muitos pais por meninos. Em 2012, nasceram 118 meninos para cada 100 meninas.
Significa que o estigma das encalhadas é apenas um componente de um problema maior. Uma verdadeira crise de solteiros, conforme indicou num estudo recente um dos maiores sites de notícias da China, o Sohu.com.
Intitulado "Mulheres e Homens em Perigo", o estudo gerou acaloradas discussões no popular microblog Weibo, a versão chinesa do Twitter. Apesar das divergências, quase todos os usuários culparam a política de filho único pela distorção.
"A política de filho único está em vigor há 30 anos. Muitos moradores das áreas rurais optaram por abortos quando conceberam meninas. Agora seus filhos não conseguem achar esposas. Isso é o que dá quando se matam bebês!", disparou a internauta identificada como Jingxuan 57203.
O desequilíbrio tende a aumentar. De acordo com algumas projeções, em 2020 haverá 30 milhões de chineses a mais que chinesas. Para um governo obcecado com o mantra da "sociedade harmoniosa", é um problema e tanto.
ANTES SÓ
"Acho que a campanha estatal contra os solteiros se dá em grande parte pela preocupação em evitar a instabilidade social", especula Wang Jin, 30, que trabalha numa firma de importação de vinhos. Assim como outras solteiras de sua idade, ela reconhece que é exigente e prefere ficar só que mal acompanhada. "Os homens chineses são imaturos. Acham que vão casar para ter alguém para servi-los", reclama. "Melhor esperar."
O nível de instrução crescente das novas gerações de mulheres chinesas provocou um obstáculo adicional. Além de tornar as mulheres mais independentes e exigentes, a maior qualificação reduziu suas chances no mercado dos casamentos, devido à convenção chinesa de que homens devem ganhar mais que as mulheres.
"Os homens chineses ficam intimidados com mulheres com poder econômico", diz Wei Wang, 25, que acaba de voltar à China depois de cinco anos na Austrália. Se dependesse dela, Wei teria ficado em Brisbane, onde se formou em finanças e marketing.
Só voltou por insistência dos pais. Mas não tem nenhuma intenção de ceder à pressão para que se case antes dos 30. "Metade das minhas colegas de escola estão casadas e já tem filho", conta Wei. Em muitos casos, a pressa em casar acelera a frustração. "Muitas já estão falando em divórcio. Não quero cometer o mesmo erro."
No parque Zhongshan, alguns pais admitem, com indisfarçada tristeza, que o investimento que fizeram na educação das filhas pode ser um tiro pela culatra.
"Estou pensando em tirar do anúncio que minha filha tem pós-graduação em psicologia", diz Aiu Aiguo, diante do cartaz que anuncia o currículo. "Uma moça qualificada demais assusta os homens".
Além da pós-graduação, o cartaz exibido por Aiu informa que sua filha mede 1,70 m e nasceu em 1988, o que ainda a mantém dois anos distante de se enquadrar no estigma de encalhada. Para ele, porém, aos 25 ela já está "velha".
"Tenho medo dos efeitos físicos e psicológicos que ela sofrerá, caso demore a se casar", afirma o pai, sentado numa cadeira dobrável ao pé de uma árvore. "Se continuar solteira, sua personalidade vai se estragar", teme Aiu.
PAQUERA
Para Joy Chen, a autora de "Não Case Antes dos 30", um dos problemas é a falta de uma "cultura da paquera" na China. "Muitas solteiras não têm exposição a homens em suas vidas. Elas vão para o trabalho e ficam o tempo todo com as amigas. Muitas das solteiras com quem conversei disseram que mal conhecem homens", diz Chen.
As moças ouvidas pela Folha concordam. A grande chance de encontrar um namorado espontaneamente é durante os estudos universitários. Depois de formadas, as oportunidades mínguam. Os homens são tímidos, e a maioria das mulheres, mesmo as de mentalidade mais aberta, não acha respeitável tomar a iniciativa.
"O choque entre tradicional e moderno não ocorre só entre gerações mas também dentro de nós", reconhece a esbelta professora de ioga de 29 anos que pede para ser chamada de Alice.
Os encontros geralmente se dão por meio de indicação de amigos ou parentes. A ação familiar é determinante. "Tenho encontro marcado com um rapaz indicado pelos meus pais. Insistiram tanto que decidi dar uma chance, para pararem de me ligar", conta ela.

Outra opção popular são os sites de casamento. O mais popular deles, Jiayuan.com (belo destino, em mandarim), tem 93 milhões de usuários registrados e escritórios em várias cidades da China. Sua fundadora, Gong Haiyan, decidiu criar seu próprio serviço on-line de relacionamentos após fracassar na busca por um marido na internet.
Passados dez anos, sua empresa é a maior casamenteira on-line da China e está cotada na Nasdaq, a bolsa eletrônica de Nova York. Porém o que mais enche de orgulho a fundadora Gong foi ter achado o marido dos sonhos pelo site.
Segundo Li Zhongxiao, vice-presidente de relações públicas do Jiayuan.com, todo dia entre 6.000 e 7.000 usuários mudam seu status de "solteiro(a)" para "apaixonado(a)" ou "encontrei o que procurava".
"Mulheres modernas têm educação superior, são independentes economicamente e na mentalidade, por isso suas preferências são muito diferentes do que no passado", diz Li. Ele afirma que os três principais requisitos das usuárias em relação ao namorado que procuram são "carreira bem-sucedida, maturidade e valores comuns".
O sonho, porém, é minimizado por um número crescente de mulheres -aquelas que se negam a aceitar o estigma de encalhadas.
No ano passado, essa geração de mulheres independentes ganhou um aliado com a produção de uma série de TV que redefiniu o rótulo tão incômodo.
A virada de mesa foi possível com um truque linguístico. "Sheng" -o termo que, no começo deste texto, foi definido como "sobra"- também pode significar "vitoriosa", uma vez que, em mandarim, palavras homófonas ganham sentido diferente segundo o ideograma escolhido na escrita.
O seriado "O Preço de uma Mulher Vitoriosa" conta a saga de uma mulher solteira que constrói uma carreira de sucesso apesar dos tropeços na vida amorosa. Para muitas solteiras, a ficção imita a vida.
"Como é que vou me sentir perdedora se faço o que quero e tenho o poder de decidir quando e com quem casar?", questiona a jornalista Yuan Yaowen. "Quero mais é aproveitar a vida de solteira enquanto posso."
Fonte: Folha , 15 Set. 2013. MARCELO NINIO, 47, é correspondente da Folha em Pequim.