segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

#viciodachina: Jovens são internados em clínicas para deixarem de passar o dia todo na internet; método militar de tratamento no centro visitado pela Folha é questionado

MARCELO NINIO - DE PEQUIM
Aos 14 anos, Zhang vive sob disciplina militar. Acorda às 6h e logo está enfileirada com outros 74 jovens para marchar durante 30 minutos. Os termômetros marcam zero grau.
Até o toque de recolher, rigorosamente às 21h, o dia é consumido em uma sequência intensa de atividades, como sessões de reeducação e exercícios físicos.
Zhang é a caçula de um grupo de jovens que passa meses isolado do mundo, numa clínica militar na periferia de Pequim. Vivem atrás de grades, mas não fizeram nada ilegal. O que os une é o diagnóstico em comum: são "viciados em internet".
O mais velho tem 30 anos. Todos foram levados à força pelos pais, que já não sabiam o que fazer para lidar com filhos que se desligaram da realidade para viver diante da tela do computador.
Nove em cada dez são viciados em jogos eletrônicos. Alguns foram drogados e levados inconscientes ao centro de reabilitação.
Outros, como Zhang, foram enganados pelos pais, que disseram a ela que iriam viajar. Quando a menina percebeu, esperneou e resistiu à internação, mas foi imobilizada por funcionários do centro e teve que ficar.
Cinco meses depois, ela já aceita melhor a situação. Lembra que passava até seis horas por dia jogando na internet e afirma que o tratamento ajuda a "controlar suas emoções".
"Mas continuo não gostando deste lugar. É muito deprimente e as aulas são pura lavagem cerebral. Isso aqui é como uma prisão", diz.
Em 2008, a China foi o primeiro país a considerar o vício em internet um distúrbio mental, conhecido como IAD (distúrbio de adição à internet, na sigla em inglês).
A classificação ainda é tema de debate. Em seu mais recente manual, a Associação Americana de Psiquiatria evitou incluir o problema na sua lista de distúrbios.
A China não precisou de mais teoria para passar à prática. Em 2009 já havia no país cerca de 300 campos de reabilitação dedicados ao vício em internet. Hoje eles estão em torno de 400.
Folha visitou a primeira clínica surgida nessa onda, instalada no Hospital Geral da Região Militar de Pequim. Seu criador, o psiquiatra Tao Ran, gaba-se de ser um pioneiro no estudo da dependência em internet.
No seu escritório, grandes fotos das aparições na TV e de encontros com celebridades mostram uma queda do doutor pela autopromoção.
Ele não hesita em comparar a internet a drogas pesadas, como heroína, quando fala dos danos causados pelo vício ao cérebro. Tao cita uma pesquisa em que foram escaneados os cérebros de 160 viciados em internet.
Segundo o psiquiatra, o resultado mostrou que a maior mudança ocorre nos lobos frontal e parietal. Essas áreas são o "centro do corpo humano", diz Tao, por serem responsáveis por decisões, planejamento e lógica.
"O metabolismo de glicose e oxigênio caiu entre 8% e 13%, o que significa que esses jovens passaram a ter cérebros de jogos'. Muitas partes de seus cérebros ficaram disfuncionais", explica.
A proliferação de métodos extremos em alguns desses centros teve um desfecho trágico em 2009. Um menino de 15 anos foi espancado até a morte num campo da Província de Guangxi, sul da China.
Na clínica do Dr. Tao, a linha-dura é visível. Os tutores vestem fardas e repreendem os internos com rispidez.
Tao garante que não há força bruta em seu tratamento, baseado em atividades físicas, pílulas antidepressivas e "aulas" --aquelas que a menina Zhang chamou de "lavagem cerebral".
O objetivo, diz o psiquiatra, é "trocar a memória" dos internos, para neutralizar a sensação de recompensa do vício. O índice de sucesso é de 70%, afirma Tao.
O psiquiatra se irrita com as críticas publicadas na imprensa americana que acusaram o método chinês de reabilitação de ser contra os direitos humanos.
"Esses meninos chegam como zumbis, não estudam, não interagem com os outros. Não tratá-los é que seria contra os direitos humanos".
Ele conta que 90% dos internos são viciados em jogos on-line. Os mais populares são o Dota e o World of Warcraft (WOW). Pode ser grego para não iniciados, mas são nomes que ocupavam boa parte das vidas dos internos.
Xu Yanzhang, 18, está em sua terceira passagem pela clínica. Tímido, conta que jogava no mínimo quatro horas por dia. Mas não se considera um viciado. Por ele, estaria na escola, se preparando para o "gaokao", o vestibular chinês.
"Esse tratamento é um desperdício de tempo e dinheiro", diz ele, de cabeça baixa.
A conta é salgada. Cada interno custa aos pais 9.300 iuanes (R$ 3.592) por mês, o triplo do que ganha a maioria das famílias chinesas.
Tao diz não achar caro pelo serviço prestado e encerra o assunto sem rodeios: "Não somos uma instituição de caridade".
Folha, 23.12.2014

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ji Wenlin, Zhu Zuoli e Zhou Yongkang são a bola da vez na limpeza "anticorrupção" de Xi Jinping

Membro do alto escalão do Partido Comunista é alvo de investigação
DA ASSOCIATED PRESS - O Partido Comunista da China colocou sob investigação, por "violações sérias", o vice-governador da província de Hainan, no sul do país.
Ji Wenlin é o mais recente dos membros do alto escalão do PC a se ver como suspeito de crimes desde que o atual líder do partido e presidente da China, Xi Jinping, assumiu o poder, em novembro de 2012.
Em nota, a comissão disciplinar do partido afirmou que Ji é suspeito de "sérias violações dos regulamentos e da lei" ""geralmente, uma referência a aceitar propinas em troca de favores.
Ji tem conexões pessoais e profissionais com o poderoso ex-chefe de segurança Zhou Yongkang, atualmente também na mira do PC chinês.
Ontem, o partido também anunciou a investigação de outra figura do alto escalão, Zhu Zuoli, vice-chefe do principal conselho da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês na província de Shaanxi.
Jinping tem implantado uma forte campanha anticorrupção dentro do partido como resposta ao descontentamento popular em relação aos excessos de seus membros.
Folha 20.02.2014
www.abraao.com


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

China desterra tradições: Êxodo rural para uma urbanização forçada ameaça tradições chinesas

Por IAN JOHNSON
PEQUIM - Uma ou duas vezes por semana, uma dúzia de músicos amadores se reúne sob um viaduto na periferia de Pequim, trazendo consigo tambores, címbalos e a lembrança da sua aldeia, hoje destruída. Eles se instalam rapidamente e então tocam uma música que é entrecortada pelo zumbido dos carros, que abafa letras que falam de amor e traição, de feitos heroicos e de reinos perdidos.
Os músicos moravam na Ponte da Família Lei, aldeia com cerca de 300 famílias, perto do viaduto. Em 2009, a vila foi demolida para dar lugar a um campo de golfe e os moradores foram espalhados por vários conjuntos habitacionais, a cerca de 20 km de distância. Agora, os músicos se reúnem uma vez por semana. Mas a distância faz com que o número de participantes seja cada vez menor. "Quero manter isto", disse Lei Peng, 27, que herdou do avô a liderança do grupo. "Quando tocamos a nossa música, eu penso no meu avô. Quando tocamos, ele vive."
Em toda a China, tradições culturais como a música da família Lei estão sob ameaça. A rápida urbanização faz com que a vida da aldeia, base da cultura chinesa, esteja desaparecendo rapidamente, levando consigo a história e as tradições. "A cultura chinesa foi tradicionalmente de base rural", diz o escritor e acadêmico Feng Jicai. "Quando as aldeias se vão, a cultura se vai."
Isso está acontecendo num ritmo impressionante. Em 2000, a China tinha 3,7 milhões de aldeias, de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade de Tianjin. Em 2010, o número já havia caído para 2,6 milhões, uma perda de cerca de 300 aldeias por dia.
Durante décadas, deixar a terra era algo voluntário, pois as pessoas se mudavam para as cidades atrás de empregos. Nos últimos anos, a mudança se acelerou, já que os governos estimularam a urbanização. A cúpula chinesa associa a urbanização à modernização e ao crescimento econômico. Os governos locais também estão promovendo essa tendência, pois veem a venda de direitos fundiários como uma forma de compensar a fraca base tributária. A expulsão de moradores e a concessão de contratos de arrendamento de longo prazo para incorporadores se tornaram um método preferencial pelo qual governos locais equilibram seus orçamentos e autoridades enchem os bolsos.
A destruição de aldeias e da sua cultura também revela vieses mais profundos. Um insulto comum na China é chamar alguém de agricultor, uma palavra associada à ignorância, ao passo que as tradições mais valorizadas são as práticas da elite, como a pintura de paisagens, a caligrafia e a música cortesã.
Mas, nos últimos anos, estudiosos chineses começaram a reconhecer o vasto patrimônio cultural da zona rural. Um projeto do governo já catalogou em todo o país cerca de 9.700 exemplos de "patrimônio cultural imaterial", ou seja, tradições frágeis, como músicas, danças, artes marciais, culinária e teatro. Cerca de 80% delas são rurais."Não se sabe se [esse patrimônio] vai ou não sobreviver, porque, quando eles estão em suas novas casas, ficam dispersos", disse Feng. "O conhecimento não fica mais concentrado e não é transmitido a uma nova geração."
Esse é o problema que os músicos da Ponte da Família Lei enfrentam. A aldeia fica no que costumava ser uma importante rota de peregrinação de Pequim para os montes Yaji, ao norte, e Miaofeng, a oeste. Religiosos pequineses caminhavam até as montanhas, parando na Ponte da Família Lei para comer, beber e se divertir.
Grupos como o de Lei se apresentavam gratuitamente para os peregrinos. Sua música se baseia em histórias sobre a vida cortesã e religiosa de cerca de 800 anos atrás, com um estilo de chamada e resposta, com Lei cantando os temas principais da história, e os outros artistas, vestidos com trajes coloridos, cantando a resposta.
Os artistas, no entanto, são cada vez menos numerosos e mais idosos. Os encantos universais da vida moderna -computadores, cinema, televisão- afastaram os jovens das atividades tradicionais.
Numa tarde recente, Lei caminhava pela aldeia, agora reduzida a escombros e coberta de mato. "Esta foi a nossa casa", disse ele, apontando para uma pequena pilha de entulho. "Nós nos apresentávamos no templo." O templo é um dos poucos edifícios ainda de pé (outro é a sede local do Partido Comunista).
Du Yang, diretora do departamento distrital de proteção ao patrimônio cultural intangível, disse que a música do grupo está entre as 69 práticas protegidas em seu distrito. "Era realmente confortável na antiga vila", disse Lei. "Tínhamos mil metros quadrados e alugávamos quartos para migrantes de outras províncias."
Estranhamente, no entanto, o campo de golfe nunca foi construído. Ninguém aqui consegue entender se isso ocorreu porque o empreendimento era ilegal ou talvez parte de um negócio fundiário corrupto que está sob investigação. Essa informação não é pública, então os aldeões só podem especular. Acima de tudo, eles tentam esquecer.
"Tento não pensar demais sobre essas coisas", disse Lei. "Em vez disso, tento me concentrar na música e mantê-la viva."
Fonte: NYT, 18.02.2014.