terça-feira, 21 de outubro de 2014

'Boom' chinês deixa agricultores para trás



Por IAN JOHNSON


YANGLING, China - A agricultura nesta região foi um dos alicerces da civilização chinesa durante cerca de 4.000 anos.
Mas agora os campos de Yangling estão abandonados. Frustrados por ganharem muito pouco, os agricultores migraram para as cidades, esvaziando este distrito rural no coração da China. Ficaram para trás pessoas como Hui Zongchang, 74 anos, que cultiva trigo e milho num lote de meio hectare enquanto seu filho é trabalhador diarista na metrópole de Xian, ao leste.
Hui diz que não ganha praticamente dinheiro nenhum com a lavoura. Ele continua a trabalhar na terra como uma espécie de seguro. "Que terra meus filhos vão cultivar se eu não continuar a cuidar desta?", explicou. "Nem todo mundo dá certo na cidade."
Antes o alicerce da cultura tradicional e depois motor do "boom" econômico pós-Mao na década de 1980, hoje a agricultura virou um peso para a China.
A produção agrícola continua alta. Mas o padrão de vida dos camponeses estagnou, e poucos enxergam seu futuro como estando no campo. Cifras recentes mostram um abismo entre a renda de trabalhadores urbanos e rurais, com os urbanos ganhando três vezes mais, fato que alimenta a insatisfação e ajuda a fazer da China uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Os líderes comunistas do país declaram que colocar o campo em ordem é crucial para a manutenção da estabilidade social. No ano passado eles anunciaram um plano de reforma econômica que tinha a política agrícola como elemento central. Mas o plano enfrenta dificuldades.
As fazendas chinesas são pequenas demais para gerar lucros significativos, tendo menos de um hectare de área, em média. Mas é difícil consolidar essas propriedades em fazendas maiores, porque os lavradores não são donos dos lotes -eles os arrendam do governo.
A privatização das terras agrícolas permitiria que as forças de mercado criassem fazendas maiores, mas correria o risco de exacerbar a desigualdade, ao concentrar a propriedade da terra nas mãos de poucos.
No final de setembro o presidente Xi Jinping endossou um experimento em curso em Yangling e outras regiões da China. A medida não privatiza a terra, mas concede aos agricultores o direito de usufruto da terra, que eles podem transferir para outras pessoas em troca de uma taxa de aluguel.
A meta é simular um mercado fundiário particular e permitir que as propriedades agrícolas chinesas familiares, que fazem uso intensivo de mão-de-obra, troquem de mãos e sejam reunidas em empreendimentos industrializados de grande escala.
Mas céticos dizem que a política de Xi revela que o governo ainda não está disposto a cogitar uma medida ousada que já funcionou bem em muitos países: dar aos agricultores a propriedade plena da terra. "A privatização da terra é uma questão crucial, mas é um tabu absoluto", comentou Tao Ran, especialista agrícola na Universidade Renmin, em Pequim. A liderança do partido "não tolera a ideia", disse ele.
Yangling criou um banco fundiário que assumiu o direito de uso da terra numa área de 90 quilômetros quadrados e depois definiu uma taxa de aluguel anual de pelo menos US$ 750 por hectare. Os agricultores podiam optar entre abrir mão de suas terras e receber o aluguel ou arrendar suas terras de volta e continuar a cultivá-las.
Mas as taxas podem gerar distorções no mercado. Elas já desencorajaram a produção de grãos, que não são vendidos com margem de lucro suficiente para compensar o custo de arrendar a terra. Segundo um morador, Li Haiwen, os grãos pagam cerca de US$ 1.250 por hectare, garantindo um lucro anual de US$ 500. "Quando mais grãos você planta, mas pobre fica", ele disse.
Em vez de grãos, ele cultiva arbustos de magnólia, usados na medicina tradicional. Mas diz que a agricultura é apenas uma atividade secundária para ele. Sua principal fonte de renda é seu trabalho de jardineiro paisagista.
"Acho que nossas cabeças estão se abrindo e estamos percebendo que existem outras maneiras de ganhar dinheiro", ele comentou.
Os planejadores governamentais esperam que mais agricultores sejam transferidos para as cidades, para que o campo seja despovoado aos poucos, dando lugar à produção agrícola em escala cada vez maior. Para pessoas que ainda querem cultivar a terra, como Zhou Yuansheng, 66, esse sistema é um exemplo de como ele não tem voz. "Ninguém me perguntou o que eu quero fazer com minha terra." NYT, 21.10.2014.
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Colaboração de Amy Qin

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dissidência chinesa enfrenta difamação

Pequim

Os dissidentes chineses são constantemente sujeitos a assédio de toda espécie. O artista Ai Weiwei não pode sair do país para ver exposições de suas próprias obras. Hu Jia, ativista dos direitos humanos que passou mais de três anos na prisão, acusado de subverter o poder do Estado, frequentemente é colocado em prisão domiciliar. E, é claro, muitos dissidentes são presos por acusações espúrias, como aconteceu com o escritor e editor underground Tie Lu, 81, detido recentemente pela polícia.
Também eu ganhei notoriedade como vítima de outro método empregado para lidar com pessoas vistas como inimigas do Estado: uma campanha depravada de difamação on-line.
Em 21 de agosto, uma série de artigos intitulada "A Vida Passada e Presente de Murong Xuecun" apareceu no Literature City, site hospedado fora da China que afirma ser o portal número um dos chineses fora do país. Vários dos textos foram assinados por pessoas que se identificaram como "Conversa Negra", "Mr. Negativo" e "Floresta", mas a maioria não se deu ao trabalho de incluir uma assinatura.
As semelhanças de estilo entre os textos indicam que eles são obra de uma mesma equipe. Os artigos revelam patriotismo fanático e obsessão moral. Todos citam fontes que não podem ser checadas. O sinal mais evidente de que se trata de um ataque coordenado lançado por aliados do governo (ninguém pode provar que a culpa é realmente de Pequim) foi que o mesmo título -"A Vida Passada e Presente de..."- foi usado em posts para difamar outros dissidentes neste ano.
As mentiras contidas nos artigos começavam com minha infância: eu teria sido expulso de várias escolas. Já adulto, teria me tornado cliente assíduo de prostitutas. Os textos disseram em seguida que já tive vários casos extraconjugais e que minhas infidelidades me levaram a espancar minha mulher. Chegaram a dizer que conspirei para explodir o aeroporto de Pequim.
Em questão de dias, links para esses textos foram postados no Twitter, que é proibido na China, e retuitados mais de mil vezes. Os textos também foram publicados em dois sites estrangeiros influentes em língua chinesa.
No início, eu apenas ri das calúnias. Mas, quando as mentiras passaram a circular em plataformas internacionais, a coisa começou a parecer séria. Eu valorizo minha reputação, e chineses inocentes em número incontável já tiveram seu bom nome destruído desta maneira.
O aspecto mais nocivo dos posts on-line é o fato de fazerem uso de elementos verídicos, como detalhes biográficos a meu respeito, incluindo os nomes de escolas em que estudei, que são conhecidos por poucas pessoas (desconfio que os autores tiveram acesso ao arquivo pessoal que o governo tem sobre mim). Os trechinhos verídicos no meio dos textos conferem um verniz de autenticidade aos artigos.
Eu não tinha como me defender. "Prove que você não fez! Me mostre as provas!", alguém me tuitou. Mas sem saber quem são meus adversários, não há ninguém com quem debater.
A acusação de promiscuidade é uma das maneiras mais eficazes de destruir uma reputação. Ela gruda à pessoa. No final de 2009, um advogado famoso, Li Zhuang, se desentendeu com Bo Xilai, então membro do Politburo e chefe de Chongqing, e foi preso. Mais ou menos na mesma época, uma foto circulou na internet mostrando Li Zhuang, nu, sendo arrastado para dentro de uma viatura policial, com a alegação de que tinha saído com prostitutas. Mais tarde veio à tona que a foto era falsificada, mas Li Zhuang é denegrido on-line até hoje. (Menos de três anos depois disso, o próprio Bo Xilai foi preso, e suas relações com várias candidatas a atrizes ou cantoras foram reveladas na internet.)
A campanha on-line contra dissidentes chineses não é um problema que afeta apenas um grupo reduzido de pessoas. Na realidade, ela é vista como um esforço para manipular a opinião em escala global.
O Partido Comunista enxerga a natureza livre da internet como uma questão de vida ou morte. Ao mesmo tempo em que reforça o Grande Firewall para manter informações indesejáveis fora do país, fechou um número enorme de blogs e intensificou a censura. Como se isso não bastasse, o governo gastou fartamente para recrutar um número enorme de comentaristas on-line pagos -"trolls" profissionais da internet, possivelmente centenas de milhares deles- para criar ruído suficiente para interferir com a discussão on-line normal, dessa maneira promovendo os interesses do partido. Os "trolls" parecem ser independentes, mas são pagos para obedecer ordens.
Esse conjunto de comentaristas na internet -conhecido popularmente como o Partido dos 50 Centavos, porque seriam pagos 50 "fen" (cerca de US$ 0,08) por cada post- elogia e defende o PC e lança ataques pessoais contra críticos do governo.
Até pouco tempo atrás, a influência dos "50 centistas" era limitada aos comentários em sites baseados na China. Campanhas de difamação como essas são comuns em sites chineses. Um ano atrás, parece que havia poucos e isolados "trolls" atuando em sites proibidos como Facebook e Twitter, baseados no exterior. Agora os "50 centistas" estão disseminando seu veneno também fora da China. Proliferam contas falsas no Twitter que despejam o discurso partidário de Pequim.
Um artigo publicado um ano atrás no "Beijing Daily" ofereceu uma explicação da proliferação dos trolls: "A internet tornou-se um dos principais campos de batalha na guerra ideológica de hoje. Forças anti-China no Ocidente procuram tirar vantagem da internet, que pode ser manipulada para modificar o equilíbrio de poder de modo a derrotar a China. Se nós não tomarmos controle da internet, outros o farão."
No passado, declarações grandiosas dessa espécie poderiam ser recebidas com pouco caso, mas hoje, quando uma China cada vez mais ousada flexiona seus músculos no exterior, a coisa deixou de ser piada: trata-se de uma guerra, e a China a declarou. Como ficará o mundo se o governo chinês vencer?
Murong Xuecun é romancista, blogueiro e autor de "Deixe-me em Paz". Envie comentários a intelligence@nytimes.com
NYT, 14.10.2014
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