terça-feira, 12 de agosto de 2014

Em Pequim, um dissidente tenta cooperar

INTELIGÊNCIA/MURONG XUECUN

PEQUIM

Escritores chineses como eu muitas vezes precisam fazer escolhas difíceis. O que devemos fazer quando os amigos são presos sem uma boa razão? Manter a boca fechada? Devemos protestar, sob risco de sermos arrastados para a prisão? É justo com nossas famílias e amigos nos arriscarmos a apodrecer na cadeia porque nos recusamos a calar a boca?
Depois de vários meses longe da China para uma residência acadêmica e de férias, voltei para minha casa em Pequim, em 2 de julho, preparado para ser preso. No exterior, eu havia anunciado no blog e neste jornal que iria me entregar às autoridades por ter contribuído com um ensaio para uma homenagem privada às vítimas da repressão de 1989 na praça Tiananmen. Vários dos participantes da manifestação em Pequim haviam sido presos.
Em 6 de julho, postei uma mensagem on-line dizendo que eu estava em casa e pronto para ser apanhado. Minha namorada nunca disse isso, mas eu sabia que ela estava desconfortável com a minha posição. Dois dias depois, recebi um telefonema de um policial da delegacia do Templo Wanshou, perto de onde eu vivo, me pedindo para ir "ter uma conversa". Entrei na delegacia por volta de 17h30 e fui levado ao segundo andar.
Precisei esperar os agentes da guobao, que é parte da força policial secreta da China. A guobao raramente é mencionada nos noticiários, e poucas pessoas sabem detalhes do seu orçamento e estrutura. Ela está em toda parte. Para dissidentes chineses, "guobao" significa pesadelo.
Enquanto esperava, apanhei de uma mesa um exemplar das "Leituras Selecionadas de Discursos Importantes de Xi Jinping". Um capítulo era sobre a construção de "uma China governada pela lei". Eu poderia ter sido encorajado pelas palavras do nosso presidente, se estivesse sentado em outro lugar.
Após cerca de 40 minutos, dois agentes à paisana da guobao apareceram e me levaram para uma pequena sala. Marcas de sapatos cobriam as paredes, e pontas de cigarro estavam espalhadas pelo chão. No meio da sala havia uma mesa com um computador e uma impressora. Minha cadeira estava em frente à mesa.
Um dos agentes apresentou sua identificação, e o outro me deu uma garrafa de água. Aconselharam-me a "responder de forma correta, caso contrário, haverá consequências legais".
Eles rapidamente se voltaram para a homenagem às vítimas do incidente de 1989 na Tiananmen. Por que você quis participar do evento? Quem contatou você? Quando? Onde haviam se conhecido? O que essa pessoa disse? O que você disse? O que você escreveu em seu discurso?
Eu respondi às perguntas deles com sinceridade. Não vi motivo para esconder nada. Em seguida, discutimos o próprio incidente da praça Tiananmen. Argumentei que sob nenhuma circunstância o governo deveria ter ordenado ao Exército que disparasse contra civis desarmados, muito menos colocar tanques para percorrer as ruas de Pequim.
Os agentes não concordaram nem discordaram de mim; continuaram a fazer perguntas: você sabe qual era a situação geral? Você sabe o que estava acontecendo nos assuntos internacionais, no momento? Sabe quantos soldados foram espancados ou queimados até a morte?
A conversa se voltou para a questão de se eu havia ou não violado a lei. Disse a eles que partia do princípio de que eles achavam que sim, porque prenderam meus amigos que estavam na homenagem à Tiananmen. Os policiais não gostaram de eu ter insinuado que a lei seria caprichosa. A lei não tem a ver com o que "acham", disse um deles. A polícia, disse o agente, prendeu meus amigos porque eles violaram a lei.
Em seguida, discutimos se os cidadãos "devem obedecer à lei". Eu disse que as boas leis devem ser obedecidas, mas que as leis do mal devem ser desafiadas. Eles discordavam fortemente, insistindo que a lei deve ser obedecida, seja ela boa ou má.
"E você é bacharel pela Universidade de Ciência Política e Direito da China, hein?", perguntou o mais jovem. Comecei a falar sobre o ensaio de Thoreau a respeito da desobediência civil, mas rapidamente me senti como um pedante ridículo. Qual é o sentido de falar sobre desobediência civil em uma delegacia de Pequim? Após o interrogatório, os dois entraram em uma sala adjacente para fazer um telefonema, supostamente pedindo instruções a superiores. Demorou um pouco.
Essa foi a parte mais difícil da noite: a espera por alguma força misteriosa que tomasse uma decisão sobre mim. Em algum lugar nesta cidade alguém estava prestes a decidir o meu destino, e eu não sabia nada sobre essa pessoa. Os dois oficiais pareciam estar no escuro também. Eles fizeram um segundo telefonema.
Voltaram, e um deles perguntou: "Se eu prender você hoje, você vai ser capaz de deixar de exagerar isso quando sair?" Eu lhes disse que não poderia prometer isso.
Os policiais queriam ir até a minha casa pegar o ensaio que eu tinha escrito para a homenagem à Tiananmen. Eu disse a eles que havia me oferecido para vir ao interrogatório, mas não tinha intenção de entregar os meus direitos, e que eles precisariam de um mandado de busca e apreensão. Eles finalmente concordaram em me deixar ir para casa sozinho e pegar o ensaio para eles. Mas, uma vez em casa, eu não conseguia encontrá-lo: eu o havia escrito em uma mensagem de e-mail, e a minha conta estava inacessível por causa do Grande Firewall.
Voltei para a delegacia de mãos vazias. Os policiais me deixaram ir embora depois de eu fazer uma declaração sobre o e-mail inacessível, de assinar cada página e de colocar uma impressão digital. Eu também tive de acrescentar uma declaração de que havia lido a transcrição da minha conversa com os policiais e que se tratava de um registro preciso. "Agradecemos por você ter se entregado", disse um agente, "mas a lei é a lei, e embora nós nunca deixemos nenhum meliante fora do laço, nunca trataremos pessoas boas injustamente. Entende?".
Esta foi a primeira vez que fui interrogado pela polícia. No decurso das minhas sete horas de interrogatório, os agentes da guobao nunca foram ferozes. Na verdade, eles foram educados. Com relação a isso, o governo chinês tem evoluído para parecer amigável, mas no seu âmago ainda é um regime ditatorial, que nunca vai acomodar alguém como eu, que não concorda com isso.
Enquanto eu estava sendo interrogado pela polícia, e depois da minha libertação, muitas pessoas -amigos e desconhecidos- expressaram seu apoio a mim, on-line. Alguns até prometeram se entregar à polícia também.
Essa reação diz algo sobre a China de hoje: cada vez mais pessoas já não têm medo de serem presas por falar o que pensam. Ser interrogado pela polícia tornou-se uma questão de honra.
Eu ainda vivo com medo. Visitei muitas prisões chinesas por causa de um romance que escrevi sobre o mundo jurídico. Sei que elas não são lugares agradáveis. Mas eu tenho um medo maior: viver em uma China onde gente boa seja presa, onde as pessoas tenham medo de falar o que pensam, e onde a lei tenha pouco a ver com a justiça.

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